2019
Bloco na Rua
Bloco na rua reedita a estética visual e sonora do show anterior Atento aos sinais (2013 – 2018), mantendo até a banda, mas renova o recado de Ney Matogrosso. Essencialmente político, o recado jamais é dado em tom de panfleto.
Aos 77 anos, ainda com bom domínio da inigualável voz metálica, o cantor recorre a sutilezas paradoxalmente contundentes. Ao entrar em cena, a primeira ação é tirar a máscara do figurino estiloso de Lino Villaventura – um dos mais bonitos vestidos pelo artista ao longo dos 46 anos de carreira – para dar a cara a tapa.
"Eu quero é botar o meu bloco na rua", avisa no vibrante refrão dessa marcha-rancho lançada em 1972 pelo cantor e compositor capixaba Sérgio Sampaio (1947 – 1994). Nesse bloco inicial do espetáculo, Ney faz um Carnaval roqueiro, no toque afiado da banda orquestrada sob a direção musical de Sacha Amback. Imagens da folia urbana salpicam no LED do telão.
Na sequência, ainda em clima roqueiro, o cantor bota as asas para fora ao reerguer "Jardins da Babilônia" (Rita Lee e Lee Marcucci, 1978), pop rock da fase Tutti Frutti da amiga Rita Lee, de quem Ney também rebobina, doze números depois, "Corista de rock" (Rita Lee e Luiz Carlini, 1976), número que sobressai o toque aguçado da guitarra de Mauricio Negão. Caras, bocas e doses de ironia fazem Ney acentuar a inquietude sempre subversiva de Rita.
Apesar dos pesares do mundo, o show não para e Ney apresenta caloroso espetáculo que se impõe entre os melhores do artista. Em "O beco" (Herbert Vianna e Bi Ribeiro, 1988), a metaleira de Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone) evoca o arranjo da gravação original da banda Paralamas do Sucesso entre cenas de tensões sociais vistas no telão.
Os sopros dos dois músicos também sublinham o ponto de fervura do caldeirão social em "Tem gente como fome" (João Ricardo sobre poema de Solano Trindade, 1979), música cujo verso-refrão-título joga na cara a situação que muitos preferem fingir ignorar.
Tema criado pelo DJ Dolores para a trilha sonora do filme "Tatuagem" (2013), "Álcool (Bolero filosófico)" escancara em clima noir a sordidez e a morbeza romântica do "alegre trópico" chamado Brasil, com direito a um bailado sensual do performático cantor, sempre hábil no jogo de cena e da sedução.
Na sequência, "Já sei" (Itamar Assumpção, Alzira Espíndola e Alice Ruiz, 1991) mantém o show em atmosfera indie, marginal, reiterando a tendência de Ney de fugir da facilidade dos roteiros de greatest hits.
Como "Atento aos sinais", o show "Bloco na rua" incomoda os acomodados. Mesmo quando um hit reaparece, o sucesso vem reconfigurado. "Sangue latino"(João Ricardo e Paulinho Mendonça, 1973) bomba em veia glam roqueira, por exemplo.
Introduzido pela marcação forte das percussões de Felipe Roseno e Marcos Suzano, "Pavão Mysteriozo" (Ednardo, 1974) plana em céu quase psicodélico, com cores vivas expostas no telão, e reforça o recado: "eles são muitos, mas não podem voar".
Ney voa no tempo e no espaço do show "Bloco na rua", seja ecoando o eterno pacto de amor com Cazuza (1958 – 1990) em "Mais feli"z (Dé Palmeira, Cazuza e Bebel Gilberto, 1986) e o arrebatamento romântico da paixão incondicional cantada em "Yolanda" (Pablo Milanés, 1970, em versão em português de Chico Buarque, 1984).
Nesse voo feito sem piloto automático, Ney revive a inquietude existencial que descolore "Postal de amor" (Raimundo Fagner, Ricardo Bezerra e Fausto Nilo, 1975), uma das duas músicas que gravou com Fagner em compacto de 1975. A outra, "Ponta do lápis" (Clodo Ferreira e Rodger Rogério, 1975), também figura no roteiro e risca tensões afetivas com latinidade quase flamenca na sequência do show.
Em "Já que tem que" (Alzira Espíndola e Itamar Assumpção, 2014), Ney cai no suingue latino e volta a bater forte na tecla da liberdade, dando ao ouvinte leque de opções que demanda livre arbítrio também proposto nos versos de "O último dia" (Paulinho Moska e Billy Brandão, 1996), canção abordada por Ney em show de 1999 e revivida 20 anos depois em "Bloco na rua" com batida funkeada.
No bis, "Como 2 e 2" (Caetano Veloso, 1971) é cantada delicadamente como balada, conduzida pelo toque do piano de Sacha Amback. No arremate desse bis, Feira moderna (Lô Borges, Beto Guedes e Fernando Brant, 1970) é convite para a paz na terra, planeta em torno do qual orbita a única (boa) inédita do roteiro, Inominável (Dan Nakagawa, 2019).
Tudo vai mal, mas Ney Matogrosso segue porque gosta de cantar e, em vigoroso show, faz mais um Carnaval nesse "alegre trópico" ao pôr na rua o bloco da liberdade.
Set List
Eu quero é botar meu bloco na rua (Sérgio Sampaio)
Jardins da Babilônia (Rita Lee e Lee Marcucci)
O beco (Herbert Vianna e Bi Ribeiro)
Álcool (Bolero filosófico) (DJ Dolores)
Já sei (Itamar Assumpção, Alzira Espíndola e Alice Ruiz)
Pavão Mysteriozo (Ednardo)
Tua cantiga (Cristovão Bastos e Chico Buarque)
A maçã (Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta)
Yolanda (Pablo Milanés, 1970, em versão em português de Chico Buarque)
Postal de amor (Raimundo Fagner, Ricardo Bezerra e Fausto Nilo,)
Ponta do lápis (Clodo Ferreira e Rodger Rogério)
Tem gente com fome (João Ricardo sobre versos do poeta Solano Trindade)
Corista de rock (Rita Lee e Luiz Carlini)
Já que tem que (Alzira Espíndola e Itamar Assumpção)
O último dia (Paulinho Moska e Billy Brandão)
Inominável (Dan Nakagawa)
Sangue latino (João Ricardo e Paulinho Mendonça, 1973)
Bis:
Como 2 e 2 (Caetano Veloso, 1971)
Coração civil (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1971)
Mulher barriguda (Solano Trindade - João Ricardo)
Banda
** Ney Matogrosso Voz
** Sacha Amback teclados, arranjos e direção musical
** Marcos Suzano percussão
** Dunga baixo e vocais
** Maurício Negão guitarras e violão e vocais
** Felipe Roseno percussão
** Everson Moraes trombones
** Aquiles Moraes trompetes e flugelhorn
Produção
** Criação de Luz Ney Matogrosso e Juarez Farinon
** Iluminação Juarez Farinon
** Figurinos Lino Villa Ventura
** Produção Executiva Krishna Viegas
** Direção de Produção João Mário Linhares
** Camarim Marivaldo Santos
* Pesquisa de Marcia Hack, texto e Mauro Ferreira